Monday, June 27, 2016

outra coisa


hoje é o lançamento de "ficcionais vol. 2" uma coletânea organizada por schneider, que (agora vem o ctrl+c ctrl v do release) "foi arquitetada a partir da seção Bastidores. A cada edição, um autor é convidado a escrever livremente sobre o processo de composição de sua obra".

a lista de autores: angélica freitas, micheliny verunschk, ana paula maia, andrea del fuego, luci collin, débora ferraz, maria valéria rezende, carola saavedra, paula fábrio, sérgio sant'anna, joão almino, ronaldo correia de brito, marcelino freire, estevão azevedo, tiago novaes, bruno liberal,  silviano santiago, everardo norões, raimundo carrero, josé luiz passos, caco ishak, antonio geraldo figueiredo ferreira, julian fúks, antonio xerxenesky,  antonio carlos viana, joão paulo parísio, luis henrique pellanda, eucanaã ferraz, sidney rocha and essa vaca profana que vos escreve.


o lançamento nacional do livro é hoje,  na livraria blooks do shopping frei caneca, com um debate com três dos autores presentes na obra: julián Fuks, sidney rocha e micheliny verunschk. aqui é o link do evento no facebook.

capa and travesti



ps: desculpa dois posts de merchandising num dia só às vezes acontece :)

fotos inéditas de vovó na próxima edição da FOG Platform


sexta-feira agora é o lançamento da terceira edição da revista FOG Platform, especializada em texto, foto e vídeo documentais. a revista fez um apanhado dos últimos 10 anos do trabalho sobre vovó e vai publicar fotos inéditas, que fiz entre fim de 2015 e começo de 2016.

se você leitorinha querida estiver no berlimbo, aparece lá (link do evento no face) ou então pode estar adquirindo uma assinatura da revista por apenas 22 euros por ano!

além do meu trabalho vão ser publicados também séries de jakob ganslmeier, ivette löcker, yvette marie dostatni, hannes wiedemann (maravilhosa pessoa and maravilhosa série), andrej kolenčík, nigel poor kowitsch, robin hinsch e meu professor mais querido ludwig rauch.







Saturday, June 25, 2016

pensando em ingeborg, no dia de seu aniversário de 90 anos


eu vou contrariar minha própria regra de nunca citar os parcêro famoso das artistas/autoras sobre as quais escrevo (algo que me dá muita raiva. tipo quando o povo vai falar de gerda taro sempre tem que mencionar que ela era a mulher de robert capa, como se isso fosse contextualizar "melhor"). mas vou quebrar minha regra porque as cartas de amor que ingeborg escreveu para paul celan eram as coisas mais lindamente humanas, ela correndo atrás dele, ele sempre sem tempo ou ocupado consigo mesmo, a gente fica identificada, né. enfim aí vai (ah e as minha "tradução" é sempre pro recifês, ceis sabe, comigo regência plural e conjugação é coisa do passado):







de ingeborg bachmann para paul celan, viena, natal de 1948, carta não enviada

Natal, 1948

Querido, querido Paul!

Ontem e hoje eu pensei muito em tu, pensei muito na gente. Não te escrevo pra que tu me escreva de volta, te escrevo porque me faz bem e porque eu quero. Eu tinha pensado em ir te encontrar em Paris esses dias, mas aí um sentimento vaidoso e idiota de conscienciosidade me prendeu aqui e eu não fui. Como fazemos então:  n'algum lugar em Paris? Eu não sei, mas de qualquer forma seria lindo!

Três meses atrás do nada alguém me deu teu livro de presente. Eu não sabia que tinha sido publicado. Foi... foi como se o chão tivesse se aberto sob meus pés, e minhas mãos tremeram bem de levinho. Então passei muito tempo sem sentir nada. Aí algumas semanas atrás em Viena comentaram que os Jenés tinha ido para Paris. Eu também fui na viagem.

Eu ainda não sei o que a última primavera significou.  - Tu sabe que eu sempre quero saber direitinho o nome das coisas. - Que foi lindo eu sei, - e os poemas,  e O Poema, que nós fizemos um do outro. 

Hoje eu te amo. Eu queria muito te dizer isso, - porque naquela época eu não disse o suficiente.

Assim que eu tiver tempo, posso ir passar uns dias aí. Tu ia querer me ver também? Por uma hora, ou duas.

Com muito, muito amor!
Sua Ingeborg




de ingeborg bachmann para paul celan, munique, 18.01.1958

sábado
18-1-58


O Proust chegou. Que bonito!! (Tu me mima muito!)

Na noite em que [tu] me ligou, eu tive que pensar várias vezes no que tu me perguntasse: "Devo ir [praí]?" Tu não faz ideia o que significa pra mim que tu pergunte isso. Eu tive que cair no choro, porque sim, porque isso existe para mim e porque eu nunca tive isso antes.

Boa viagem, ânimo e não deixe nenhuma bobagem estragar tua felicidade. Eu vou pensar num lugar e te escrevo em Dresden. Por ora, se cuide!
 
Ingeborg




fiz uma tradução desse poema para nossa homenagem a dora lara barcelos, que reposto aqui:
 


Exílio

Eu sou um morto que perambula
em canto nenhum registrado
desconhecido no reino da política
supérfluo nas cidades douradas
e no campo fértil
descartado já há muito
e totalmente esquecido

Apenas vento, tempo e som

que eu, entre pessoas, não posso viver

Eu com a língua alemã
essa nuvem ao meu redor
que eu considero minha casa
me arrasto entre todas as línguas

Ai, como ela se eclipsa
a escuridão, o som da chuva
é pouco o que cai

Então é para onde tem luz que ela leva seu morto. 





e, uma vez que contrariei a porra da regra mermo, para terminar, uma tradução esbaforida que fiz pra corona, poema-tão-lindo que celan escreveu para ingeborg, publicado em seu primeiro livro, "mohn und gedächtnis", de 1952.




Corona

O outono devora suas folhas em minhas mãos: somos namorados.
Descascamos o tempo de dentro das nozes e o ensinamos a partir:
O tempo volta para a casca.

No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
a boca diz a verdade.

Meu olhar desce para o sexo da amante:
Nos olhamos,
dizemos coisas sombrias,
nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o brilho sanguíneo da lua no mar.

De pé abraçados à janela, o povo na rua nos vê:
é tempo que saibam!
É tempo da pedra se preparar para florescer,
que a inquietação faça bater um coração.
É tempo de ser tempo.

É tempo.



Corona

Aus der Hand frißt der Herbst mir sein Blatt: wir sind Freunde.
Wir schälen die Zeit aus den Nüssen und lehren sie gehn:
die Zeit kehrt zurück in die Schale.

Im Spiegel ist Sonntag,
im Traum wird geschlafen,
der Mund redet wahr.

Mein Aug steigt hinab zum Geschlecht der Geliebten:
wir sehen uns an,
wir sagen uns Dunkles,
wir lieben einander wie Mohn und Gedächtnis,
wir schlafen wie Wein in den Muscheln,
wie das Meer im Blutstrahl des Mondes.

Wir stehen umschlungen im Fenster, sie sehen uns zu von der
                                                                Straße:
es ist Zeit, daß man weiß!
Es ist Zeit, daß der Stein sich zu blühen bequemt,
daß der Unrast ein Herz schlägt.
Es ist Zeit, daß es Zeit wird.

Es ist Zeit.



Wednesday, June 22, 2016

Friday, June 17, 2016

poema inédito na modo

plus uma foto belíssima da minha pessoa (num vou mentir).








(cenas do documentário "under the spell of horses")









aproveito pra agradecer a ricardo domeneck que deu um tapa no meu vocabulário de pangaré e revisou lindamente o poema.





Wednesday, June 15, 2016

almodóvar, la lupe, william

a lei do desejo








 






trecho de "tudo sobre minha mãe"


trecho de "kika"







trecho e trilha de "mulheres


puro teatro
de tite curet alonso
vocalização da imensa la lupe
em tradução de william zeytounlian


Que nem num cenário
‘cê finge seu sofrer barato.
Mas que drama desnecessário:
já conheço esse teatro.

Fingindo,
você faz direitinho o papel...
no final das contas parece
que esse é seu jeito de ser.
Eu confiei cegamente
na febre dos beijos teus.
Você mentiu serenamente
e a cortina, enfim, desceu.

Teatro,
você é puro teatro
falsidade ensaiada
estudado simulacro.

Sua melhor atuação
foi destroçar meu coração.
Agora, você chora de verdade;
e eu relembro o simulacro.
Foi mal pela sinceridade,
mas eu acho que é teatro.


diante dos ataques de ontem em orlando, essa semana esse blog vai ser gay (como se já não fosse). 

#loveislove

Tuesday, June 14, 2016

na revista OLD

interrompemos brevemente nossa programação de gayrrilha para convidar vocês queridas leitorinhas a ir dar uma olhada na edição nova da revista old, que tem trabalhos de camila pastorelli, gustavo gomes, yannis karpouzis, xavier sánchez, uma entrevista com josé diniz and esta adelaide que vos escreve.

clique nas fotos pra ver mais.





audre lorde e james baldwin



"And nobody can say a thing
about our being lesbians
because
I am president now"








diante dos ataques de ontem em orlando, essa semana esse blog vai ser gay (como se já não fosse). 

#loveislove

Monday, June 13, 2016

ricardo #2


20.
Na rua, empertigo-me todo,
alinho omoplatas e ombros,
os cabelos bem penteados,
as roupas novas e limpas,
pois, de cada janela 
de bonde ou ônibus,
talvez seus olhos

ricardo domeneck em "cigarros na cama"







2003

2011


















Carta ao pai

Agora que o senhor
mais assemelha pedaço
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há-de morrer só
porque nem a própria
saliva poderá engolir
por si na companhia
somente desta sonda
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas
e se deveras me amaria
tanto menos soubesse
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela
da Globo da Record
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical
com a tradição
e se deveras faria
sobrevir sobre eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido
o cérebro em veias
como riachos insistentes
em correr
fora das margens
se o senhor
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa
de todos os patriarcas
ainda pergunto-me
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem
e semelhança invertidas
tal espelho
que refletisse opostos
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém geridos
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai
eu
mesmo pedaço
de carne
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio




diante dos ataques de ontem em orlando, essa semana esse blog vai ser gay (como se já não fosse). 

#loveislove

Sunday, June 12, 2016

stela do patrocínio, parte 8 (e última), procurando falatório

pág. 141

Eu já falei em excesso em acesso muito e demais
Declarei expliquei esclareci tudo
Falei tudo que tinha pra falar
Não tenho mais assunto mais conversa fiada
Já falei tudo
Não tenho mais voz pra cantar também
Porque eu já cantei tudo que tinha que cantar
Eu cresci engordei tô forte
Tô mais forte que um casal
Que a família que o exército que o mundo que a casa
Sou mais velha do que todos na família

pág. 143

Me transformei com esse falatório todinho
Num homem feio
Mas tão feio
Que não me aguento mais de tanta feiúra
Porque quem vence o belo é o belo
Quem vence a saúde é outra saúde
Quem vence o normal é outro normal
Quem vence um cientista é outro cientista



essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

stela do patrocínio, parte 7, botando o mundo pra gozar e sem gozo nenhum

pág. 121

Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade de querer

pág. 122

Eu não tenho coragem de enfrentar nada
Eu tenho que enfrentar a violência
A brutalidade a grosseria
E ir à luta pelo pão de cada dia

pág. 123

Eu sou mundial pobre
Tudo pra mim é merda durinha à vontade
Até ser contaminada e contaminada até ser merda pura
E é merda fezes excremento bosta cocô
Bicha lombriga verme pus ferida vômito escarro porra
Diarréia disenteria água de bosta e caganeira

pág. 125

Eu não sei o que fazer da minha vida
Por isso eu estou triste
E fico vendo tudo em cima da minha cabeça
Em cima do meu corpo
Toda hora me procurando me procurando
E eu já carregada de relação sexual
Já fodida
Botando o mundo inteiro pra gozar e sem nenhum gozo

pág. 127

Você já está me comendo tanto com os olhos
Que eu já não tenho de onde tirar força
Pra te alimentar

pág. 130

É quadrilha exército povoado
Bloco médico escoteiros e bandeirantes
Isso é família porque família é família
Tudo é família
Você não é família?

Uma família é uma reunião uma reunião
Uma família pra mim é uma reunião de médicos e cientistas
Minha família era a família que se garantia
E sumiu de repente desapareceu mudou
Mudou não sei se foi porque mudaram as vestimentas
A família toda com as mesmas roupas
Com roupas iguais
E aí mudou as roupas
Pra poder ficar mais difícil a diferença entre nós

Escoteiros quem vence são bandeirantes
Bandeirantes quem domina e vence são escoteiros
Família é quadrilha exército povoado
Bloco médico escoteiros bandeirantes
Corpo de bombeiros quadrilha exército
Povoado bloco médico corpo de bombeiros

pág. 131

Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Meter tudo dentro da lata do lixo e fazer um aborto
Será que acontece alguma coisa comigo?
Vão me fazer alguma coisa?

Se eu pegar durante a noite novamente a família
toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Jogar lá de dentro pra fora
Lá de cima pra baixo
Será que ainda vai continuar acontecendo
alguma coisa comigo?

pág. 133

Me ensinaram a morder chupar roer lamber e dar dentadas





essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Saturday, June 11, 2016

stela do patrocínio, parte 6, reino dos bichos e dos animais é o meu nome

pág. 109

A vida a gente tem que aceitar como a vida é
E não como a gente quer
Se fosse como eu queria
Eu não queria ver ninguém no mundo
Não queria ver ninguém na casa
Queria estar toda hora comendo bebendo fumando
Assim é que eu queria que fosse meu gosto

Mas como eu pulei muro despulei muro
Pulei portão despulei portão
Pulei lá de cima pro lado de fora
Do lado de fora pro lado de dentro
Quer dizer que eu...

Não é como eu gosto
Eu não esperava pular janela despular janela

pág. 113

Lá no portão eu disse
Quero pastar à vontade que nem camelo
Pra ver como fica o resultado da história da vida de Cristo

pág. 116

Depois do entre a vida e a morte
Depois dos mortos
Depois dos bichos e dos animais
Só fica a vontade como bicho e como animal

pág. 118

Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Um verdadeiro jardim zoológico
Quinta da Boa Vista






essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Friday, June 10, 2016

silvia


"não posso passar sem a Elisabeth"
Adília Lopes









stela do patrocínio, parte 5, a parede ainda não era pintada de azul

pág. 97

No céu
Me disseram que deus mora no céu
No céu na terra em toda parte
Mas não sei se ele está em mim
Ou se ele não está
Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal
E passando mal de boca
Me alimentando mal comendo mal
Passando muita fome
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres
Cumprindo prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada

pág. 98

Eles disseram pra mim
Você não pode passar sem um homem
Sem mulher sem criança sem os bichos sem os animais
Mas alimentação e super-alimentação você
também não pode ter

pág. 100

Só depois da relação sexual é que eu posso
carregar tudo pela língua e pela boca

pág. 101

Tinha terra preta no chão
Um homem foi lá e disse
Deita aí no chão pra mim te foder
Eu disse não
Vou me embora daqui
Aí eu saí de lá e vim andando
Ainda não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não via tinta azul pelas paredes
A parede ainda não era pintada de azul

pág. 102

Eu fui agarrada quando eu estava sozinha
Não conhecia ninguém não conhecia nada
Não via ninguém não via nada
Nada de cabeças de corpos
Nada de casa nada de mundo
Eu não conhecia nada eu era ignorante

Depois que eu fui agarrada pra relação sexual e pra foder
Depois, só depois eu comecei a ter noção e ficar sabendo
Antes eu não fazia nada
Não dependia de nada
Não fazia nada
Era como uma parasita
Uma paralisia um câncer



essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Thursday, June 09, 2016

stela do patrocínio, parte 4, eu enxergo o mundo

pág. 90

Eu vejo o mundo e a família
O mundo e a família
A família que vive no mundo
E vive na casa que está sempre no mundo
E que está sempre na casa...
E a Dra. Elisabeth disse assim pra mim
E você queria ver mais do que isso pra quê?
E você queria ver mais do que isso pra quê?

pág. 92

É a mesma mulher é o mesmo homem
É a mesma criança é o mesmo bicho
É o mesmo animal é o mesmo espírito
É a mesma alma é o mesmo Deus
É a mesma Nossa Senhora
É o mesmo Menino Jesus no Tempo


essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Wednesday, June 08, 2016

stela do patrocínio, parte 3, nos gases eu me formei, eu tomei cor

pág. 79

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam pra nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

pág. 82

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, falar falatório
Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro

pág. 83

Eu não sei como pode formar uma cabeça
Um olho enxergando, nariz respirando
Boca com dentes
Orelhas ouvindo vozes
Pele, carne ossos
Altura, largura, força
Pra ter força
O que é preciso fazer?
É preciso tomar vitamina




essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Tuesday, June 07, 2016

stela do patrocínio, parte 2, eu sou stela do patrocínio, muito bem patrocinada

pág. 62

Não trabalho com a inteligência
Nem com o pensamento
Mas também não uso a ignorância

pág. 63

Eu sou seguida acompanhada imitada
assemelhada
Tomada conta fiscalizada examinada revistada
Tem esses que são igualzinhos a mim
Tem esses que se vestem se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta

pág. 64

Dias semanas meses o ano inteiro
Minuto segundo toda hora
Dia tarde a noite inteira
Querem me matar
Só querem me matar
Porque dizem que eu tenho a vida fácil
Tenho vida difícil
Então porque eu tenho vida fácil tenho vida difícil
Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo
Sem facilidade com dificuldade
Por isso é que eles querem me matar

pág. 66

Eu sou Stela do Patrocínio
Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa nega preta e crioula
Eu sou uma nega preta e crioula
Que a Ana me disse

pág. 68

Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca

pág. 69

Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente

Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada nem trabalhar

Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro

Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria

pág. 73

Meu passado foi um passado de areia
Em mar de Copacabana
Cachoeira de Paulo Afonso
Bem dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas
No Rio de Janeiro

O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando

O que eu penso em fazer da minha vida
É encontrar a felicidade, ser feliz
Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando

pág. 74

Eu sei que o meu passado
Eu prestei bem atenção como foi
O presente
Eu continuo prestando atenção como é
Mas o futuro
Eu não sei como vai ser
É difícil de eu descobrir
Como vai ser meu futuro



stela do patrocínio na modo de usar & co.

essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Monday, June 06, 2016

stela do patrocínio, parte 1, um homem chamado cavalo é o meu nome

pág. 51

Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente

O hospital parece uma casa
O hospital é um hospital

pág. 52

É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

pág. 54

O remédio que eu tomo me faz passar mal
E eu não gosto de tomar remédio
passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico
cambaleando
Quase levo um tombo
E se eu levo um tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair

pág. 57

Sinto muita sede muito sono muita preguiça
muito cansaço

Fico na malandragem na vagabundagem como marginal
E como malandra como marginal como malandra
na malandragem
Na vagabundagem e na vadiagem como marginal



essa semana teremos só stela do patrocínio, porque é tempo de stela. os textos que vão aparecer aqui são do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002), organizado por vivane mosé. agradeço a ricardo domeneck por ter me emprestado o livro.

Friday, June 03, 2016

para dora




01 de junho de 2016 marcou o 40º aniversário da morte de maria auxiliadora lara barcelos, guerrilheira da VAR-palmares, que foi presa, torturada e abusada sexualmente pelo regime militar. dora se exilou no chile, na bélgica e na berlim ocidental, onde se suicidou, jogando-se na frente de um trem na estação de charlottenburg, em 1976, aos 31 anos.

neste dia, em sua homenagem, ricardo domeneck, érica zíngano, rafael mantovani, bia krieger e eu nos encontramos na estação de chalottenburg, para um pequeno ritual, onde poemas de hilda hilst, wislawa szymborska, ingeborg bachmann, anne sexton e torquato neto foram lidos.








WANTING TO DIE
anne sexton

Since you ask, most days I cannot remember.
I walk in my clothing, unmarked by that voyage.
Then the almost unnameable lust returns.

Even then I have nothing against life. 
I know well the grass blades you mention,
the furniture you have placed under the sun.

But suicides have a special language.
Like carpenters they want to know which tools.
They never ask why build.

Twice I have so simply declared myself,
have possessed the enemy, eaten the enemy,
have taken on his craft, his magic.

In this way, heavy and thoughtful,
warmer than oil or water,
I have rested, drooling at the mouth-hole.

I did not think of my body at needle point.
Even the cornea and the leftover urine were gone.
Suicides have already betrayed the body.

Still-born, they don’t always die,
but dazzled, they can’t forget a drug so sweet
that even children would look on and smile.

To thrust all that life under your tongue!--
that, all by itself, becomes a passion.
Death’s a sad Bone; bruised, you’d say,

and yet she waits for me, year after year,
to so delicately undo an old wound,
to empty my breath from its bad prison.

Balanced there, suicides sometimes meet,
raging at the fruit, a pumped-up moon,
leaving the bread they mistook for a kiss,

leaving the page of the book carelessly open,
something unsaid, the phone off the hook
and the love, whatever it was, an infection.





érica lendo hilda (esqueci de fazer video, péssima)

DA MORTE. ODES MÍNIMAS (XXII)
hilda hilst

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.



MARGINÁLIA II
torquato neto

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo



ricardo lendo "exil", de ingeborg bachmann






O QUARTO DO SUICIDA
wislawa szymborska

Vocês devem achar que o quarto estava vazio.
Pois havia ali três cadeiras de encosto firme.
Uma boa lâmpada contra a escuridão.
Uma mesinha, e sobre a mesinha uma carteira, jornais.
Um Buda alegre, um Jesus aflito.
Sete elefantes para dar sorte, e na gaveta um caderninho.
Você acha que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Pois lá estava o trompete consolador nas mãos negras.
Saskia com uma flor cordial. 
Alegria, centelha divina.
Na estante Ulisses num sono reparador
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes inscritos em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Ao lado, também os políticos perfilados.

Não parecia que o quarto fosse
sem saída, pelo menos pela porta
nem sem vista, pelo menos pela janela.
Os óculos para longe largados no parapeito.
Uma mosca zunindo, ou seja, ainda viva.
Devem achar que ao menos a carta explicasse algo.
E se eu lhes disser que não havia carta –
éramos tantos os amigos e coubemos todos
no envelope vazio apoiado no lado do corpo.

(tradução de regina przybycien)




(as fotos que aparecem neste post são ©ivánova, ©mantovani, ©zíngano)



Thursday, June 02, 2016

dois poemas de júlia de carvalho hansen

Como um relógio cuco quando apita a hora
a língua - que é todo um investimento -
está capitalizada em um lugar nenhum.
Dinheiro? Que me deem mais do que é preciso
e que assim eu fique bem.
É o credo dos tempos, não disse?
E haja quem puder renegar o deus
dizer três vezes que não necessita, ir viver entre os pauzinhos
de uma cabana ou amassar o próprio pão - respeito-os todos.
A roda dentada não para de morder, entretanto não tenho paraíso
fiscal para fugir. É toda vez isso: a conta no negativo
e mais e mais e mais. Em retribuição escarro em mim
a dívida do mérito, vácuo que rege a fé em todos os supermercados,
estacionamentos, eleições de municípios e se camufla
em latifúndios de uma gente sem esperança, só com resultados
mortes de índios, helicópteros empilhados num hangar.
Vez ou outra é só uma imensidão de queda
vez ou outra é só um hemisfério inteiro
que padece de fome, de frio, e morre.



Saberem-se errados, turvos, iludidos, desmascarados
não faz de vocês pessoas melhores ou mais reais.
A infelicidade, a tormenta, o vício, as fezes
não fazem de vocês pessoas melhores ou mais reais.
As desculpas, as explicações, quaisquer intenções
não fazem de vocês pessoas. Fazem de vocês, vocês
estarem errados, turvos, iludidos, desmascarados
infelizes, atormentados, viciados, cagões
desculpados, explicados, intencionais
vivos. E não sozinhos.
Mas quem não sabe de nada disso
Mas quem sabendo de tudo isso
confunde-se ao ponto de se achar
achado, melhor e vivo
está sozinho. E, bem,
nem os mortos
estão sozinhos.



das páginas 35 e 36 do belíssimo "Seiva veneno ou fruto", de júlia de carvalho hansen, lançado em março desse ano pela chão da feira.

Wednesday, June 01, 2016

dora barcelos, presente (e um poema de wislawa)

TORTURAS
Wisława Szymborska

Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.

Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar Roma e depois de fundada,
no século XX antes e depois de Cristo,
as torturas são como eram, só a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.

Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escala e registro sempiternos.

Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.

Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.

(tradução de Regina Prybycien)


hoje, 01 de junho de 2016, é o 40º aniversário da morte de maria auxiliadora lara barcelos, guerrilheira da VAR-palmares, presa, torturada e abusada sexualmente pelo regime militar. dora se exilou no chile, na bélgica e na berlim ocidental, onde se suicidou, jogando-se na frente de um trem na estação de charlottenburg, em 1976, aos 31 anos. dora, presente, presente, presente.